quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Olho em volta e vejo apocalipses*

Tenho alma de saci. Gosto do cheiro da terra molhada e do café recém coado. Também gosto de cismar e de perambular descalça enquanto organizo o alfabeto da minha alma. Às vezes ouço Carmina Burana e choro.


Nessas andanças, olho o
rio que corta minha cidade e vejo que ele pede socorro. Vejo uma natureza doente, gerando desequilíbrio, mortes e desastres "naturais" - aquecimento, furacões, terremotos, enchentes e desertificação.


Mas o ambiente que percebo adoecido não é apenas o natural. Há muitos outros.


Uma sociedade doente e desigual, que banaliza a violência e atira suas crianças nos córregos ou pelas janelas, escraviza seus animais, atropela e mata de fome ou de obesidade mórbida.


Uma economia doente com seu consumismo desenfreado, inflação e miséria – um mundo em que menos de 20% das pessoas detém 80% da riqueza.


Uma escola doente com baixo aprendizado, evasão, desvalorização da autoridade do professor e "bullying".


Uma família doente com pais ausentes que terceirizam o afeto e a atenção, para a escola, a babá ou a TV.


Uma empresa doente que gera concorrência desleal, assédio moral, boicotes e lucro pelo lucro.


Uma política doente em sua busca insana de poder, corrupção e total falta de ética.


Uma cultura doente com guerras, alienação, terrorismo, inversão de valores, solidão e desejos descartáveis.


O indivíduo doente refletindo seu desequilíbrio ao seu redor e a natureza e cultura devolvem essa desarmonia como numa sala de espelhos sinistra.


Estamos olhando apenas nosso reflexo no espelho. Sendo assim, o rio da minha cidade é apenas o reflexo do sangue intoxicado de alimentos artificiais, agrotóxicos e conservantes que correm pelas veias e artérias dos seus habitantes. Na falta de árvores de suas matas ciliares há os sacos de lixos em suas margens e toda a feiúra do que um dia foi pura vida.


Profanamos a natureza e ela se transformou num inferno que nos aprisiona, mas mesmo assim ainda continua sagrada.


Embora a destruição tenha se profissionalizado, nossa reação continua sendo amadora, mas isso não me tira a esperança que ainda temos tempo de caminhar para uma biosociedade e uma ecopolítica.


Ecologia não diz respeito apenas ao ambiente, é também social e pessoal. É filosofia, espiritualidade, ética e respeito. É uma consciência, uma nova percepção.


Uma omissão seria letal. Pensar fora da gaiola é fundamental.


No meio desse descompasso nada mais nos resta do que ter atitudes conscientes e trabalhar por um meio ambiente mais inteiro.


A cantata de Carl Orff segue ecoando em minha alma e me servindo de inspiração, com seu conceito medieval e orgânico dos eternos ciclos de mudança na natureza e em nossas vidas.

Penso que ela sugere uma busca de equilíbrio do cosmo, onde o bem certamente não exista sem o mal, mas justamente aí é que está sua grandeza; sem o profano o sagrado não se manifesta e à destruição segue-se um ciclo de reconstrução. É nessa oscilação que se encontra nossa beleza e nosso destino de continuar acreditando que a Roda da Fortuna logo, logo vai girar e trazer novamente a pureza do ambiente.


Precisamos criar boas histórias para contar aos herdeiros da Terra.


Não escrevemos nosso passado, mas nossas atitudes de hoje podem construir as memórias de um futuro mais sustentável e saudável para todos os seres vivos.


* Texto premiado no concurso literário de crônicas Astra cujo tema era "Quando o meio ambiente fala, o que você ouve?


Maristela Moura

2 comentários:

  1. Com muita certeza temos mesmo pois nossa hitória anda cada vez mais pobre.
    Abraços forte

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  2. Excelente crônica; descreve muito bem o tema.
    abs,
    Edilza

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